segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Os novos dias eram como se fossem um eterno desfazer-se.
Desfazer-se do que era antes e assumir uma nova postura. Como se no tempo e espaço percorrido, uma metamorfose se processava.
Como se a cada passo caísse um pouco daquilo que já havia sido; como se um novo ser nascia a cada segundo.
Como se de uma casca ou de um casulo, emergisse um novo habitante da Terra.
A sensação de ir ao encontro do futuro, e não apenas de ficar parado esperando que ele chegasse era exatamente essa.
Como se a consequência dessa ação de progresso espacial vinha acompanhada desse sabor de novidade.
Conseguia se comparar às borboletas, mariposas ou até mesmo às árvores. Via que fazia parte da mesma Natureza dinâmica, fluída, que não se contentava em permanecer, mas sim em mudar, mudar sempre, se tornando sempre igual e diferente...
Computava muito das ocorrências aos sentimentos. Eram eles que o impeliam a andar para frente e não para trás.
E não se referia somente ao Amor. Se referia a um sentimento de ânimo. À vontade de amar, de beijar, de descobrir, de saber, de ir, simplesmente.
Amar era sempre bom, ainda mais quando era um sentimento compartilhado. Com o mundo, com quem desejasse e precisasse do seu beijo, da sua mão, do seu carinho.
A Vida, acreditava, era pequena sem a partilha. Mas não aquela partilha por obrigação, como pregam religiões, mas aquela desprendida, sincera, vinda do canto mais profundo do ser.
A incompreensão era só mais uma forma de se negar à pequenez do dever-ser.
A própria partilha era o desfazimento do egoísmo que todo sentimento bom reclama para si.
No fim restava a mudança, imperando sobre o tempo e sobre o ser.
Sentir e fazer o Mundo feliz - estava ali a missão!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Reflexão I

"Ter propósitos: está aí uma coisa que nunca tive. Aliás, tive e os perdi. Todos um por um.
Lembro de ter propósitos até ter a primeira decepção amorosa. E isso deve ter sido quando tinha apenas seis ou sete anos... Enfim, não lembro."

E sentado, olhando para mim, falava dessa forma da própria vida...

"De mais a mais, tenho preguiça de propósitos. Durmo o dia inteiro e saio a noite. E daí que meu esporte favorito seja caçar? Nunca me imaginei sendo diferente, e ter propósitos requer força de espírito, o que também não tenho."

Falava com tanto vagar que eu conseguia meditar sobre cada sílaba pronunciada. Me imaginava em seu lugar e, por breves instantes, pensava que uma vida assim deveria ser leve...

"Qual seria o meu deus se tivesse um? Preferiria acreditar seguramente em Apolo. É um deus belo (o mais belo de todos), patrono das artes, inspirador de profecias! Queria ter vindo a um mundo onde o surrealismo fosse a regra... O cotidiano me enfastia, me causa náuseas! Rotina? Sim, a tenho e já falei: dormir e caçar. Apenas."

Já olhava com desdém aquela criatura antes mesmo dela abrir a boca e se mostrar acomodada e apática com relação à vida. Agora ainda mais pela fuga imaginária a um mundo surrealista.
Isso servia de lição para eu dar menos ouvidos a felinos, que na minha vida não acrescentaram nada mais do que alergias...

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

"Filho de chocadeira". Era a frase que gritava em sua cabeça desde antes de abrir os olhos, que doíam profundamente. Era a ressaca, conhecida de anos.
Quando abriu, finalmente, os olhos se viu na cama em meio a um mar de plumas vermelhas da estola da noite anterior e roupas espalhadas pelo quarto todo. E nenhum sinal de mais ninguém dentro do apartamento.
A boca e a garganta secas pediam água. Levantou-se como estava, sem roupas, e caminhou até a cozinha lentamente. A sensação era de como se estivesse caminhando há horas, por léguas sem fim. Passou na sala e viu sapatos, que não conhecia. Parou alguns segundos, os observou (sem forças mesmo para se perguntar de quem seriam - só os observou) e seguiu o trajeto até a fonte de água fria mais próxima, na cozinha.
Chegando a um corredor que levava até a cozinha e até a porta de entrada do apartamento, do outro lado, a viu aberta para o corredor comum do prédio. Uma família vizinha entrava em uma porta qualquer e o avistou, nu. Todos pararam e o observaram e ele os observava de volta, sem entender o porquê da surpresa. Seguiu até a geladeira, pegou uma garrafa d'água e bebeu dali, sem copo e sem maiores cerimônias, afinal estava seco.
A sede era tamanha que mesmo bebendo a água ela parecia não o saciar. Em um impulso estranho ergueu sobre a cabeça a garrafa d'água e tomou um banho ali mesmo, na cozinha. Quando terminou a "ducha", pensou que poderia haver algo estranho consigo. Nunca agira daquela forma. E com a porta da geladeira sendo segurada, meditava sobre o que havia se passado na noite anterior para se encontrar naquele estado. Meditava.
Um som estranho começou a se tornar incômodo. Vinha da rua e, num impulso natural, voltou a cabeça para a janela mais próxima, que estava com as persianas levantada. Viu que era cedo da manhã, pois a luz era tênue, como num amanhecer.
Onde estavam todos? Onde estava seu amigo que dividia o apartamento com ele? Onde estavam seus amigos que saíram com ele para a festa?
Um súbito ânimo o tomou de assalto e, rapidamente, se encontrava em seu quarto procurando pelo celular. No entanto, não o encontrava. Procurou debaixo da cama, no armário, em gavetas, no meio das plumas vermelhas. Nada. Absolutamente nada. Foi quando reconheceu uma música: era o toque do seu aparelho. Procurava, procurava e a música insistia em tocar. Até que encontrou dentro do bolso da jaqueta, que juntamente com o celular tinha algo que se parecia com um chiclete mascado e grudento.
"Alô?"
"Oi! Finalmente você atendeu, seu seu..."
"Tudo bem, Janis? Estou acordando agora... onde vocês estão?"
"Agora? Finalmente, não é? Achei que tinha morrido!"
"Ah que exagero! Olha só! É cedo até... nem dormi muito..."
"Como assim? Não é cedo da manhã: está anoitecendo! Você estava dormindo há dois dias!"
"Oi?"
Não conseguia crer. Nunca fez isso. Bom, agora ao menos sabia como era dormir esse tempo todo. Sorrindo foi verificar na agenda do celular.
Sim. Havia dormido dois dias!
Mas algo aconteceu. Estava com roxos que não fazia ideia de onde vinham... E sapatos que não conhecia na sua sala e vizinhos que o encaravam sem absolutamente nenhum motivo!
Algo acontecia no mundo. E ele investigaria!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

raridades

me agradam as pedras mais raras, as que têm as cores iluminadas e iridescentes...
me agradam os suspiros mais profundos e sinceros arrancados nas noites quentes do verão...
gosto das palmeiras mais esguias, coroadas de côcos verdes, saudando as nuvens...
gosto das vertigens provadas em teus olhos negros como um abismo misterioso.

e por buscar raridades, como você, andei sempre só,
comigo mesmo, cismado em minha voz,
encerrado em meus sussurros, calados de dor,
e caminhei sempre em lugares planos e retos.

já não quero mais planícies por serem fáceis,
já não quero estar em mim,
não preciso buscar mais raridades:
já as tenho bastantes.

quero você, apenas,
por ser todas as raridades em uma só:
a Opala, o Suspiro, o Verde, o Abismo,
- me basta a raridade que é você.